Discriminação, Liberdade de Expressão e Empatia

Pedro Morgado

Discriminação, Liberdade de Expressão e Empatia

Entrevista a Pedro Morgado

Dentro da luta pelos direitos humanos, revela-se, na atualidade, a importância de atentarmos nos problemas de discriminação da comunidade trans.
Pedro Morgado, psiquiatra, investigador e professor da Escola de Medicina da Universidade do Minho, redigiu, em julho deste ano, uma crónica para a Comunidade Cultura e Arte intitulada “Cancelaram a Empatia” onde aborda essa mesma discriminação, em sequência de uma grande polémica gerada nas redes sociais à volta de piadas e comentários de humoristas e colunistas.

Em Portugal, tem havido mudança significativa na discriminação da comunidade queer e da comunidade trans?
A maior consciência dos graves problemas de discriminação que persistem faz com que seja mais difícil admirar as mudanças estruturais que aconteceram ao longo das últimas duas décadas. É muito importante salientar que a discriminação diminuiu de forma significativa e isso traz-nos esperança para o futuro. Embora as pessoas queer continuem a ser discriminadas, a comunidade trans é hoje o principal foco de preocupação. Há 20 anos, quando entrei na Universidade, não existiam pessoas queer – era tudo invisível. Hoje são as pessoas trans que têm essa invisibilidade – há quem fale muito e ignorantemente sobre elas, mas as pessoas trans são, de facto, invisíveis na sociedade.

Quais os principais desafios em relação com a sociedade e consigo mesmas que enfrentam as pessoas trans antes, durante e após a transição de sexo?
Antes de formularmos um juízo sobre o assunto, é fundamental ouvir o que nos dizem as pessoas trans. E o que as pessoas trans nos contam são histórias marcadas pelo sofrimento, pela discriminação e pela incompreensão. Os desafios começam na percepção da situação pelos próprios, na sua partilha com a família e amigos e, posteriormente, em todas as mudanças que acabam por acontecer. A transição de sexo também acarreta uma série de desafios, desde logo relacionados com as questões de acessibilidade aos cuidados de saúde necessários no contexto do Serviço Nacional de Saúde e com os custos das intervenções no privado. É importante salientar que nem todas as pessoas trans efetuam transição de sexo.

Que impacto tem a discriminação durante a infância e adolescência na vida adulta e, em particular, nas pessoas trans?
Uma das principais fontes de sofrimento é a falta de preparação da sociedade para incluir todas as pessoas na sua diversidade. Mas, pior do que a não inclusão, são mesmo as situações de discriminação a que estas pessoas são sujeitos diariamente e de forma intencional ou não. A discriminação tem um impacto muito negativo na saúde mental e física das pessoas trans, aumentando o risco de doença psiquiátrica e, em particular, de suicídio. Cada vez que fazemos um comentário negativo, desinformado, não empático ou simplesmente jocoso acerca das pessoas trans estamos a contribuir para perturbar o bem-estar e a vida de alguém que o irá ler ou ouvir.

Quais as principais ideias contraditórias aos consensos técnico-científicos atuais que são atribuídas ao papel da genética e da cultura na transexualidade? Que consequências traz a difusão destas ideias por pessoas com largo alcance de audiência para os direitos humanos?
O conhecimento científico ainda não explica totalmente a diversidade sexual. Mas é absolutamente consensual que a diversidade de orientações sexuais ou expressões de género não é uma escolha mas uma característica das pessoas que deve ser compreendida e respeitada enquanto tal. Alguns grupos pegam em achados científicos isolados para difundir as suas crenças acerca da sexualidade, do género e da transexualidade de uma forma que é desonesta e se afasta dos consensos técnico-científicos. Têm como objetivo limitar os direitos das pessoas trans da mesma forma que no passado procuraram limitar os direitos das pessoas em função da sua cor de pele, origem ou orientação sexual. A difusão destas ideias não fundamentadas pela evidência científica agrava o estigma e a discriminação a que as pessoas trans são sujeitas e tem impacto negativo na garantia dos seus direitos civis.

O que temos ainda a percorrer quanto aos direitos civis das pessoas trans? Como considera que as pessoas em sociedade precisam de evoluir para contornar a discriminação das mesmas e para que a sua dignidade seja salvaguardada?
Em primeiro lugar precisamos de garantir o acesso atempado de todas as pessoas trans aos cuidados de saúde que necessitam. Em segundo, precisamos de garantir que cada pessoa é respeitada na sua singularidade do ponto de vista dos direitos civis que falta consignar. Em terceiro, precisamos que todas as instituições adotem políticas inclusivas para as pessoas trans. A nossa Universidade, por exemplo, ainda não dispõe de casas de banho e balneários adequados para todas as pessoas, ainda não aderiu de forma consistente às campanhas contra a discriminação e ainda não tem um código de conduta que regulamente as ofensas homofóbicas e transfóbicas pelos membros da sua comunidade em contexto público presencial ou virtual.

Quais são ou quais deveriam ser, a seu ver, os limites da liberdade de expressão?
A liberdade de expressão é um direito fundamental e protegido constitucionalmente que deve ser defendido sem reservas. Mas, como todos os direitos, tem naturalmente limites entre os quais se inclui a difusão de discursos discriminatórios ou de ódio e de discursos degradantes da condição de outrem.

Atualmente, parece haver muita confusão entre os conceitos de cancelamento e de liberdade de expressão. Que razões atribuiria para este tipo de equívoco? Em que medida é que isto limita a nossa evolução quanto aos direitos humanos?
De facto existe muita confusão, alguma obviamente intencional. Nos últimos anos, alguns movimentos extremistas inventaram os conceitos de “politicamente correto” e “cancelamento” para tentarem escapar à crítica e ao escrutínio das suas posições. Na verdade, a liberdade de expressão em Portugal é plena. Como se viu nos últimos meses, os comentadores e humoristas podem dizer os disparates e as ofensas que entendem acerca das pessoas trans sem que ninguém os tenha silenciado ou cancelado. Uma pessoa que diz que um humorista não tem piada porque ofende pessoas discriminadas e vulneráveis não está a cancelá-lo nem a ser politicamente correta – está simplesmente a utilizar a sua liberdade de expressão para defender a sociedade em que acredita. Parece que os comentadores com opiniões mais retrógradas e os humoristas que congelaram as piadas nos anos noventa têm dificuldade em aceitar que a sua liberdade de  expressão não é maior do que a dos outros. Por muito que lhes custe, as suas posições também podem ser livremente escrutinadas, debatidas, questionadas e contraditadas.

A defesa dos Direitos Humanos nunca foi fácil e sempre tivemos que lidar com este tipo de táticas desonestas e narrativas enganadoras. O trabalho é hoje dificultado pelo facto dos media tradicionais e sociais favorecerem as mensagens mais sensacionalistas.

A solução é sermos persistentes e combativos, dar voz às pessoas, evitar certezas sobre realidades que não conhecemos assim tão bem e, em cada momento, defender cada pessoa na sua singularidade que é o garante da maior riqueza da nossa sociedade – a diversidade que existe.

Pedro Morgado, alumnus da Escola de Medicina e Psiquiatra
Texto publicado originalmente na edição n.º13 do HajaSaúde
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